O primeiro Streets of Rage foi lançado para Megadrive em 1991, sendo um dos pioneiros dos beat’em up desenvolvidos para consoles caseiros; os outros “brigas de rua” que podiam ser jogados em casa na época eram ports com qualidade reduzida de versões originais de arcade. O jogo teve sucesso e sua sequência, Streets of Rage 2, marcou o gênero e aquela geração mostrando que consoles caseiros poderiam suportar um briga de rua com sprites grandes, muitos inimigos na tela e uma ótima trilha sonora; além de aprofundar a jogabilidade com uma boa quantidade de movimentos, golpes especiais e a capacidade de encadear combos. Veríamos ainda um Streets of Rage 3 no Megadrive, mas -com o fim da quarta geração de consoles- a série caiu num limbo. Projetos para consoles mais novos foram anunciados e abortados, os anos se passaram e parecia que de Streets of Rage restaria apenas seu legado e um merecido lugar na história dos games, além de jogatinas casuais dos antigos games que continuavam divertidos. Porém as desenvolvedoras Lizardcube, Guard Crush Games e Dotemu resolveram entrar nessa história.
Vinda da experiência satisfatória dum remake de Wonderboy, a Dotemu decidiu apostar na resistente popularidade de Streets of Rage e, com a licença da Sega, se lançou à produção duma continuação mais de duas décadas depois do lançamento do ultimo jogo da série.
A comunidade de jogadores dividiu-se entre a empolgação e o ceticismo dos que, depois de tantos rumores e projetos abortados, quiserem ver pra crer. Streets of Rage 4 foi lançado em 2020 e os jogadores viram e creram: o resultado era ótimo, a atmosfera da franquia e seus personagens estavam lá, mas ao mesmo tempo era um jogo novo, com desenhos substituindo bem os antigos pixels, uma trilha sonora à altura dos predecessores e uma mecânica de jogo que ampliava e aprofundava ainda mais as possibilidades do gênero enquanto mantinha seus conceitos e clichês mais simples.
Porém a grande maioria dos jogadores intuía que o jogo -ainda que completo e satisfatório- receberia uma DLC. A ideia parecia estar lá de antemão, sobretudo pelo fato de personagens marcantes estarem presentes, mas não serem jogáveis.
Algum tempo depois duma atualização de balanceamento os desenvolvedores finalmente confirmaram o já imaginado: uma DLC estava em produção.
Conteúdo gratuito?
Pelo próprio conceito de DLC, quando uma delas é lançada, sempre há alguma desconfiança de se tratar antes de tudo de um modo de fazer os jogadores pagarem duas vezes pelo mesmo jogo, ou de consistir em poucos conteúdos não muito relevantes para espremer mais lucros.
Nesse sentido a primeira coisa que descobrimos ao examinar o jogo é que temos novidades ainda antes de comprarmos a DLC: uma nova e grande atualização gratuita faz um novo balanceamento dos personagens baseado nas criticas recebidas da comunidade de jogadores, além de acrescentar a possibilidade de alterar a paleta de cores dos cinco personagens do jogo (à parte os personagens retrô), explorando possibilidades de personalização. E sobretudo traz um novo modo que o jogo demandava desde o começo: o modo treino. Com toda a complexificação da jogabilidade e seus combos um espaço para treinar com cada personagem diferente se fazia necessário; nele há tutoriais que vão dos mais básicos até truques específicos de cada lutador, crescendo gradualmente em complexidade enquanto ensinam a explorar as possibilidades do jogo. Além de contar com um modo livre de treino que chama a atenção pelo seu potencial de personalização: podemos escolher quais e quantos inimigos estarão na tela, além da dificuldade de sua inteligência artificial e outras variáveis, permitindo criar desafios específicos e se divertir explorando ao máximo as possibilidades caóticas de encher o cenário com muitos inimigos diferentes. Além dessa possibilidade de afiar nossa habilidade, há uma nova dificuldade onde podemos por ela em prática: o “Mania +”, que beira o sadismo e vem adicionar mais desafio ainda a quem achava que já tinha dominado completamente o jogo.
E aqui acabam as novidades gratuitas: vemos três novos personagens na tela de seleção como desbloqueáveis com a compra da DLC. Fazendo isso finalmente podemos controlar Max, Shiva e Estel em suas novas versões: os modelos desses personagens já estavam no jogo e os enfrentávamos no modo história, não demandaria muito trabalho coloca-los jogáveis e eram um dos principais motivos que nos levavam a crer que haveria uma DLC planejada.
Os Novos Lutadores
E, comprada a DLC, cá estão eles finalmente;
Max Thunder está de volta, o velho wrestler de Streets of Rage 2 a primeira vista gera a desconfiança de ser redundante, já que a vaga de personagem lento mas fortíssimo (clichê dos beat’em up) já foi ocupada em Streets of Rage 4 por Floyd Iraia. E realmente as estatísticas de ambos são muito parecidas, mas a versão SOR4 de Max tem técnicas e recursos que o diferenciam a ponto de o destacar como possibilidade diferente dum mesmo tipo de personagem. Mesmo para jogadores que não curtem personagens no estilo “lento e pesado” vale a pena explorar as novas possibilidades do lutador e o estrago que elas podem causar.
Assim como Max, Shiva estava disponível anteriormente numa versão retrô, mas agora podemos finalmente controlar a nova versão do antigo braço direito de Mr.X.
Já havíamos descoberto, ao derrota-lo como chefe duma das fases do modo história, que o lutador de kempo levava uma nova vida, e agora podemos pôr em pratica o que ele aprendeu com ela: Shiva é um personagem com movimentos bonitos, literalmente um artista marcial, mas isso não o torna menos letal, podemos até demorar um pouco para nos acostumarmos com sua caixa de colisão e o timing dos seus combos que diferem da sua versão anterior, mas o modo treino está aí pra isso, e ao fim teremos um personagem bastante prazeroso de ser controlado em possibilidades espetaculares de combos; sendo que uma das suas principais características se mantem: ele não carrega armas (ou, como ele gosta de dizer, ele é a arma), mas pode chuta-las do chão na direção dos inimigos, o que ajuda e muito a prevenir a interrupção dos combos e chega a ser quase apelativo.
E finalmente temos Estel Aguirre, a personagem foi uma das novidades do jogo e ocupava uma posição na trama quase idêntica à do comissário Gordon nas estórias do Batman: a policial honrada que a principio se opõe aos vigilantes de rua, mas tem que rever sua posição quando descobre que a policia esta corrompida e acaba se tornando uma aliada.
Estel controlável foi umas das primeiras e mais frequentes demandas da comunidade de jogadores, e não decepciona: a policial lutadora de Krav Magá tem recursos excelentes numa jogabilidade bastante técnica, mas fluida: não é difícil começar a jogar com ela. Estel talvez seja o maior exemplo duma tendencia dessa DLC, os golpes no chão: todos os novos personagens têm golpes que podem acertar imigos caídos, e alguns personagens antigos ganharam novos golpes nesse sentido. Porém em Estel eles chegam a ser apelativos na sua capacidade de encadear combos bastante longos sem dar muitas chances de resposta ao oponente. Por fim, Estel, apesar de ser uma personagem nova, traz ainda algo bastante nostálgico aos fãs de longa data da franquia: o especial de chamar a viatura de polícia, tal qual no primeiro jogo. Finalmente temos ele de volta numa personagem controlável.
E assim terminaríamos a lista de novos personagens, se não tivéssemos uma surpresa oculta nessa DLC. Na quinta fase do modo história víamos o canguru Roo aparentemente atuando como barman, mas não podíamos interagir com o animal e tampouco o víamos fora daquele momento. Surgiram notícias de que o personagem não seria jogável devido à ação de sociedades de proteção aos animais. Porém o fato é que Roo está de volta, pelo menos na sua versão retrô, nos mesmos pixels em que aparecia no terceiro jogo. Porém podemos escolher o bicho apenas através de um cheat: seguramos o botão de ataque, pra cima e start na tela título, soltamos, e ao entrar no modo história vemos Roo estre os personagens selecionáveis.
Sua jogabilidade é diferente de qualquer outro lutador, ele é veloz e sua capacidade de aumentar rapidamente a contagem de hits é apelativamente ímpar. Seu especial estrela também é diferente: ele convoca o palhaço que serve como seu domador para acompanha-lo na fase ajudando a dar porrada nos inimigos; o curioso aqui é que o número de palhaços convocáveis ao mesmo tempo é limitado apenas pelo numero de estrelas que temos, e inclusive há uma nova conquista secreta nesse sentido…
O pesadelo de Mr.X: o modo sobrevivência
Animados com os novos personagens somos tentados a experimenta-los no modo história, então descobrimos que praticamente não há nada de novo nesse modo em si: as mesmas fases, mesmas animações, mesmos inimigos e chefes, tudo tal qual antes. A grande novidade está em outro lugar: o modo sobrevivência. É ele que dá nome à DLC: o pesadelo de Mr.X é uma simulação criada pelo Dr. Zan a partir do cérebro do falecido vilão, para atender uma demanda de treino por parte dos nossos lutadores que querem estar prontos para o caso de novas ameaças. O modo sobrevivência consiste nessa simulação e é em torno dele que gira o potencial inovador da DLC.
A premissa do novo modo é simples e efetiva: cenários fixos onde enfrentamos sucessivas hordas de inimigos até passamos à próxima fase, onde acontece basicamente a mesma coisa e assim infinitamente ou até finalmente perdemos nossa única vida e estabelecermos nosso recorde. A partir desse conceito básico o novo modo se complexifica a ponto de se tornar quase viciante; ao fim de cada round podemos escolher entre duas melhorias, elas vão desde bônus elementais para nossas armas à possibilidade de um segundo salto no ar, passando pela redução de dano quando nossa energia está abaixo da metade, um aliado espectral para nos ajudar, efeitos elementais em golpes, e várias outras possibilidades, muitas delas trazendo revezes: como adicionar vários bônus mas impedir seu personagem de pular, ou, exemplo mais drástico, a melhoria chamada “canhão de vidro”, que aumenta o dano causado em 100%, mas faz o mesmo com dano recebido.
Esses power ups são cumulativos e a escolha deles ao fim de cada round se torna um elemento estratégico: à medida que eles se acumulam transformando seu personagem numa versão super as fases vão ficando cada vez mais desafiantes e surpreendentes em suas novidades: os cenários aqui são novos e incluem ventania, esteiras, armadilhas e outros elementos que complexificam a situação interferindo na jogabilidade, além de novas armas extravagantes que vão desde guarda-chuvas a espadas gigantes que parecem ter saído da série Final Fantasy. Mas a inovação não para aí, há novos cenários retrô, com o mesmo filtro linear que víamos ao usar os Arcades no modo história, e neles enfrentamos hordas de inimigos diversos (alguns bastante chatos) dos 3 primeiros jogos da franquia.
À medida que progredimos no desafio vemos que os chefes do jogo também se fazem presentes e não necessariamente um de cada vez, há mesmo versões espectrais de personagens jogáveis para nos enfrentar. A partir de certo ponto as fases vão se tornando um caos difícil de administrar, até que -ao perdermos a vida- descobrimos que nada foi em vão: progredir no modo sobrevivência, além de garantir um lugar num leaderboard, nos permite desbloquear os novos conjuntos de armas que usamos, e novos movimentos opcionais para o personagem que escolhemos: o movimento blitz e todos os especiais (defensivo, ofensivo, aéreo e estrela) ganham variantes que podem ser escolhidas caso a caso, tornando os lutadores personalizáveis para além da sua paleta de cores. Podemos ter literalmente nossa versão pessoal de cada um deles de acordo com as nossas preferencias descobertas após testar as inúmeras combinações disponíveis.
E tudo que desbloqueamos no modo sobrevivência pode ser usado nos outros modos do jogo, incluindo o modo história. Isso corrige um dos grandes pontos negativos do jogo: o esgotamento do fator replay. Apesar de ser um ótimo jogo, Streets of Rage 4 em geral prendia a atenção dos jogadores até o termino do modo história com todos os personagens, daí em diante continuavam jogando os que queriam fazer todas as conquistas e tentar boas performances nos níveis mais altos de dificuldade, porém mesmo pra esses o apelo do jogo frequentemente se esgotava em algum ponto.
O pesadelo de Mr.X conseguiu renovar com sucesso o fator replay do jogo, tanto pelos desafios viciantes modo sobrevivência em si, como pelos conteúdos desbloqueados nele que agregam valor aos modos já existentes, adicionando-lhes novas dinâmicas que renovam o interesse do jogador. Mesmo no modo treino podemos usar inimigos que desbloqueamos no modo sobrevivência, que inclui ainda uma versão de desafio semanal, onde as fases não se sucedem aleatoriamente, mas numa sequência predefinida alterada semanalmente.
E pra quem já tinha alcançado todas as conquistas do jogo, ou tencionava lograr o feito, também há novidades: com mais personagens e modos vieram também mais conquistas relacionadas aos novos desafios.
Uma nota musical
Por fim, não podemos falar de qualquer jogo dessa franquia sem mencionar sua trilha sonora marcante, e isso não é diferente nessa DLC: além dos cenários novos o modo sobrevivência conta com todo um novo conjunto de músicas compostas pelo compositor e DJ português Tiago Lopes, o mesmo Tee Lopes responsável pela trilha sonora de Sonic Mania. A música, como de costume, se casa bem com a ação do jogo ao mesmo tempo em que merece ser ouvida a parte.
Avaliação final
Por tudo isso “O pesadelo de Mr.X” vale a pena considerando o seu preço e tudo que ele traz ao jogo. É uma DLC competente nos propósitos de diversificar, adicionar conteúdo e renovar o interesse e as possibilidades do jogo. Ela, assim como seu jogo original, nos mostra que as bases do velho gênero briga de rua continuam funcionando: ainda é divertido progredir batendo em todos que vemos pela frente; sobretudo com a beleza que as novas tecnologias propiciam. Contudo, o gênero pode ser complexificado no aprofundamento das suas possibilidades, atraindo tanto jogadores casuais como “hardcore players” e tudo que existe no espectro entre ambos. Streets of Rage 4 Mr. X Nightmare vale a pena por lograr tudo isso a um preço justo.
A DLC está disponíveis nos principais consoles e plataformas, com um valor fixado de R$16,59 na Steam (atualmente com 15% de desconto).