Para medir a importância de Kratos temos que lembrar que ao longo do desenvolvimento da indústria dos games surgiram muitos jogos e com eles uma miríade de personagens. No meio de tantos não era tarefa das mais fáceis criar um personagem marcante; e, à medida em que as várias gerações de consoles se sucediam, essa dificuldade aumentava pois grandes personagens símbolos dos games já tinham surgido em gerações anteriores, tornando um lugar ao sol cada vez mais disputado.
Imagine o cenário no início dos anos 2000: a sexta geração de consoles tinha chegado poucos anos antes com o Dreamcast, e o Playstation 2 tentava estabelecê-la no mercado. Ao longo das 5 gerações anteriores já tinham se estabelecido personagens como Mario, Sonic, Crash, Lara Croft, Ryu, Mega Man, Link e vários outros. Com uma concorrência tão forte e já estabelecida seria difícil criar um personagem para o novo console que se destacasse a ponto de se tornar também uma referência de videogame ante o público geral.
Mas o Santa Monica Studios conseguiu. Em 22 de março de 2005 a desenvolvedora lançou God of War, que bebia na inesgotável fonte da mitologia grega e baseava seu enredo num motivo também inesgotável ao longo das narrativas humanas: a vingança.
Mas não foram só o enredo e o cenário que garantiram o sucesso daquele jogo, todas essas temáticas se traduziram muito bem no seu protagonista, um personagem que conseguiu, a força e fúria, um lugar ao sol entre os personagens mais icônicos dos games e garantiu à Sony mais um símbolo para o Playstation 2 e para a sexta geração de consoles como um todo.
Kratos e seu game se tornaram tão populares que geraram uma demanda de mercado que tornou possível ao Santa Monica Studios concretizar seu desejo de transformar God of War numa trilogia.
E mais recentemente a série ganhou um revival, com a produção de novos jogos que se ambientam anos depois da trilogia original, colocando o jogador na pele dum Kratos mais velho e maduro, estabelecido em terras nórdicas e vivendo um enredo baseado nessa mitologia.
Entre o Kratos da chamada “era grega” da primeira trilogia e sua versão mais velha da chamada “era nórdica” do revival há diferenças notáveis de personalidade que geraram certa controvérsia entre alguns fãs da série. Há os que acham que o personagem se descaracterizou, enquanto outros sustentam que o que aconteceu com Kratos foi simplesmente a evolução de um caráter ao longo dos anos, uma evolução verossímil em relação ao desenvolvimento do personagem na primeira trilogia, afinal pessoas mudam e amadurecem (ou deveriam amadurecer) ao longo do tempo. Essa é inclusive a posição de Cory Barlog, diretor dos novos games.
Mas o objetivo desse artigo não é discutir essa pequena polêmica, mas sim listar algumas curiosidades sobre esse personagem já clássico e ao mesmo tempo renovado. Vamos a 10 curiosidades sobre o sempre popular Fantasma de Esparta.
1. Criado na força do ódio
David Jaffe, o diretor do primeiro God of War, queria produzir um jogo que tivesse algo de um bom filme de ação com combates brutais, e também queria que esse game fosse tão bom que se tornasse uma referência de como jogos de ação e aventura deveriam ser, tudo isso se baseando numa temática de vingança e na mitologia grega.
Para um jogo assim ele queria um protagonista que não apenas coubesse, mas encarnasse essas características. A ideia que ele passou aos artistas conceituais da sua equipe era de um personagem que encarnasse violência e uma fúria inexorável.
Nesse sentido, a sua última instrução à sua equipe de artistas antes que eles partissem para a elaboração dos possíveis designs do personagem foi: “vão ao trabalho com raiva, desenhem e vamos ver o que acontece!”
O que aconteceu foram artes conceituais que traziam a expressão pessoal de cada artista da raiva e da violência na forma de uma figura humana. Seguiu-se um trabalho de seleção e depuração: as melhoras artes foram escolhidas e refeitas retirando-se alguns elementos como roupas e peças de armadura, quanto mais despidos mais animalescos aqueles guerreiros pareciam, até que sobrou apenas um deles, o protagonista que conhecemos, ainda sem estória, mas com um nome…
2. Um nome poderoso
Kratos em grego clássico significa literalmente “poder”, é a mesma raiz que aparece em palavras de origem grega como democracia: do grego “demos” (povo) e “kratos” (poder).
Um nome apropriado para a sensação que os desenvolvedores queriam dar aos jogadores quando estes estivessem no controle do brutal personagem.
Contudo essa não era a primeira vez em que esse nome servia a algum personagem ligado à mitologia grega…
3. O Kratos “real”
Conta o poeta grego Hesíodo que os titãs Palas e Estige tiveram quatro filhos eles se chamavam Zelo (rivalidade/grandeza), Nice (vitória), Bia (ódio) e Cratos (poder). Sim, existe um personagem na mitologia clássica grega chamado Cratos (com “c” na tradução para o português); o seu nome, como você viu na curiosidade anterior, significa poder, e ele de fato era uma personificação da força e do poder.
Mas os seus paralelos com o Kratos de God of War são limitados: o Cratos da mitologia integrava junto com seus irmãos as forças aladas de Zeus, assim ele funciona como uma representação da força e do poder do rei dos deuses, e foi decisivo na luta pela defesa do Olimpo contra o monstro Tífon .
Muito diferente do nosso Kratos de God of War, que se descobre filho de Zeus com uma mortal, e entra numa trama de vingança contra o Olimpo e o próprio Zeus que se torna a sua principal e quase única força motriz.
Porém há ainda mais um paralelo importante entre o Cratos com “c” e o Kratos com “k”: conta a mitologia grega clássica, que Zeus considerava Ares, o deus da guerra, excessivamente arrogante, e pretendia substituí-lo justamente pelo titã Cratos, tão leal a ele e poderoso em combate. Ao descobrir isso, Ares aprisionou Cratos no tártaro.
Essa história serviu de inspiração para o começo da franquia God of War, na qual o espartano Kratos, passa de servo de Ares a alguem que o ataca, mata e toma seu lugar como deus da guerra. Trama que inclusive dá nome ao jogo: God of War.
4. Os três “pais” de Kratos
Na curiosidade anterior já vimos que o Kratos de God of War é filho de Zeus com uma mortal. Mas, no que se refere à criação e desenvolvimento desse personagem e seus jogos no Santa Mônica Studios podemos dizer que Kratos teve três “pais”. Cada jogo da primeira trilogia de God of War foi dirigido por uma pessoa diferente: o primeiro deles ficou a cargo do já mencionado David Jaffe, que teve as ideias iniciais para o jogo e seu personagem.
No segundo game Jaffe se afastou da produção deixando a direção do projeto a cargo de Cory Barlog, que no primeiro game tinha trabalhado na animação de Kratos, dando “vida” às ideias de Jaffe. Inclusive o próprio diretor do primeiro game afirmou publicamente que Barlog era tão ou mais “pai” de Kratos que ele próprio.
Já no terceiro jogo seria a vez de Barlog se afastar da direção e dar lugar a Stig Asmussen, que tinha trabalhado no desenvolvimento dos ambientes do primeiro jogo e assumido a direção de arte do segundo.
Atualmente David Jaffe se tornou streamer do show Gabbin' + Games, que discute a indústria de videogames. Stig Asmussem recentemente dirigiu o desenvolvimento do jogo Star Wars: Jedi Survivor, enquanto Cory Barlog foi o responsável pela direção dos jogos do revival da franquia God of War, a partir do final que Asmussen dirigiu para a série no God of War III.
Porém esse final poderia ter sido bem diferente se David Jaffe ainda estivesse à frente do projeto à época…
5. Kratos, a fé nos deuses e o nascimento do cristianismo (um final alternativo que nunca aconteceu)
David Jaffe, idealizador e diretor do primeiro God of War, afirmou numa entrevista para o canal Gametrailers que tinha planos diferentes para o roteiro do terceiro game da série principal, o que encerraria a trilogia.
Na sua versão Kratos enfrentaria e derrotaria Zeus no início do game, o que faria com que deuses nórdicos e egípcios surgissem disputando o vazio de poder que Zeus havia deixado.
Nesse cenário, Kratos e os Titãs combateriam os deuses nórdicos, egípcios e gregos que brigariam entre si pelo poder. Kratos viajaria à Noruega e ao Egito ao decorrer desse jogo, enquanto combatia esses deuses.
Ao fim Kratos descobriria que o meio de enfraquecer um deus era fazer com que os humanos parassem de acreditar neles, a tarefa não seria difícil pois, na sua guerra pelo domínio do mundo, os deuses estariam prestando pouca atenção aos mortais que por isso estariam enfrentando desastres naturais.
Com os deuses enfraquecidos pela diminuição da fé dos humanos, Kratos e os titãs finalmente os matariam um a um, Kratos então cortaria os próprios pulsos com as lâminas de Atena e se reuniria no submundo dos mortos com sua mulher e filha. Após isso o jogador veria uma animação que mostraria três reis magos seguindo uma estrela, indicando o nascimento iminente do cristianismo.
Um enredo bem diverso do que de fato se deu em God of War III, mas ainda assim interessante.
Porém não foram só trocas de diretores e suas visões que permearam os bastidores dos jogos estrelados por Kratos
6. Uma festa de dar o que falar
Como a maioria dos personagens famosos de mídias diversas, Kratos já recebeu diversas homenagens na cultura cosplayer, porém um modelo vestido de Kratos chamou atenção especial por conta do contexto em que apareceu: uma festa de lançamento de God of War II.
Mas não era uma festa comum, ela aconteceu em Atenas, na Grécia, e tentava recriar o clima brutal e dionisiaco do jogo: havia moças de topless colocando uvas na boca dos participantes, enquanto o modelo vestido de Kratos lhes dava guirlandas, e até mesmo uma cabra de verdade estava decapitada sobre uma das mesas!
Essas e outras caracterizações do ambiente dessa festa causaram certo escândalo e algumas polêmicas que envolveram de ativistas dos direitos dos animais a periódicos que não costumavam sequer tocar no assunto videogame!
Pra piorar tudo, fotos do evento foram publicadas numa revista oficial do Playstation. A Sony acabou se desculpando e recolhendo a tiragem da revista, relançando-a em seguida sem as fotos.
Não se sabe se foi uma jogada de marketing bem ou mal sucedida, mas a popularidade de Kratos aparentemente saiu ilesa, e nada disso influenciou seu futuro filho Atreus…
7. O Atreus “real”
Um pouco acima afirmei que havia um Cratos na mitologia grega clássica; agora vamos a uma curiosidade análoga: há também um Atreus.
O Atreus da mitologia grega clássica em geral tem seu nome traduzido para o portugues como “Atreu”, e era o rei de Micenas e pai de Agamenon e Menelau, personagens importantes no enredo do famoso poema épico Ilíada e com influência na sua sequência, a Odisséia, ambos atribuídos a Homero.
Como se pode ver esse Atreu “real” aparentemente tem pouco a ver com o filho de Kratos em terras nórdicas. Talvez a escolha do nome em comum tenha se dado não pelo personagem em si, mas pelo significado desse nome em grego clássico: destemido.
Kratos significando poder, e Atreus significando ausência de medo: uma dupla e tanto de pai filho! E falando nisso é hora de abordarmos a relação entre…
8. Kratos e a paternidade
Uma das artes conceituais descartadas no processo de criação de Kratos mostrava-o como um guerreiro carregando um bebê às costas.
O fato é que, muito antes de Atreus a paternidade já era um tema presente na vida do espartano.
Um dos principais motivos da saga de vingança do espartano foi a perda, não só da sua primeira esposa, como da sua primeira filha, Calliope. Inclusive os poucos momentos em que Kratos sorri ao longo de todos os jogos da franquia costumam ser relacionados aos seus filhos, ela faz isso em God of War: Chains of Olympus, ao reencontrar sua filha Calíope no submundo e também numa cena com seu filho Atreus em God of War: Ragnarok
Porém a convivência com Atreus nos jogos do revival da franquia levam o aspecto paternal de Kratos a outro nível na medida em que enfatizam uma jornada do personagem através da paternidade. Tema que, de certo modo, ele traz na pele…
9. Um guerreiro marcado.
Ao longo dos jogos da franquia God of War algumas coisas na aparência de Kratos chamam a atenção, e não falo apenas das suas cicatrizes, mas sobretudo da sua tatuagem vermelha e a palidez não natural da sua pele.
No universo de God of War, um oráculo profetizara que um guerreiro marcado traria fim aos deuses do Olimpo. Tempos depois nasceria em Esparta um garoto com uma notável marca de nascença que faria os deuses lembrarem-se dessa profecia.
Mas não estou falando de Kratos, e sim do seu irmão mais novo, Deimos. o deus da guerra Ares capturou Deimos e o levou para uma existência de tormento no submundo para evitar que se cumprisse a profecia.
Porém com isso ele criou outro guerreiro marcado, pois Kratos, lamentando e jurando vingança pelo irmão, tatuou a marca de nascença de Deimos no seu corpo, sendo essa a origem das tatuagens do guerreiro.
Já a palidez de sua pele carrega uma culpa difícil de redimir: quando estava à serviço de Ares, Kratos recebeu a missão de atacar uma vila de adoradores de Atena, a oráculo da vila aconselhou o espartano a não atacar o templo da deusa, mas Kratos ignorou os avisos e invadiu o templo massacrando todos ali dentro. O que ele não sabia é que Ares tinha transportado sua esposa e filha para o templo, e o espartano acabou assassinando-as junto com os outros.
Quando se deu conta de quem tinha matado a culpa e o pesar tomaram conta do guerreiro, a oráculo da vila então o amaldiçoou, fazendo com que as cinzas da sua esposa e filha se lhe grudassem à pele, dando o aspecto esbranquiçado e fazendo com que ele ficasse conhecido como “O Fantasma de Esparta” e adicionando alguns dos seus principais motivos de vingança contra os deuses.
Porém a fúria e a vingança nem sempre foram as forças motrizes de Kratos..
10. Quando Kratos agiu para salvar
Nos jogos da primeira trilogia de God of War e seus spin offs em geral o motor das ações de Kratos são a fúria e a vingança que ele encarna. Mas há exceções. Kratos já partiu em busca de Ambrosia para salvar sua filha em God of War: Ascension. E agiu para salvar seu irmão Deimos em God of War: Ghost of Sparta, além de tentar impedir o sacrifício de Pandora em God of War III para salvá-la.
Com isso talvez não seja de espantar que um Kratos mais maduro no God of War de 2018 tenha como motivação inicial espalhar as cinzas da sua segunda esposa de acordo com seu desejo.
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Eu poderia listar ainda mais curiosidades sobre um personagem tão interessante quanto Kratos e os enredos que o envolvem, mas as 10 acima estão de bom tamanho para contribuir com a compreensão de um dos personagens mais icônicos dos games!