Xenogears: A Divina Tragédia Humana

Xenogears: A Divina Tragédia Humana

Caprichosamente, a história nos mostra que inúmeras obras-primas nascem sem grande alarde. Pois, ao se distanciarem de vorazes expectativas, os artistas possuem espaço e liberdade necessários para darem vazão de maneira plena a seus ideais estéticos. O conceito de Xenogears surgiu em 1996 como um possível candidato ao enredo do aguardado Final Fantasy VII. Temendo o insucesso do sétimo episódio de sua mais importante franquia, a Square vetou a possível associação de uma trama que abordava diversos temas polêmicos. Mas, deu seu aval para a produção de uma série totalmente inédita. Fruto das mentes do casal Tetsuya Takahashi e Kaori Tanaka (mais conhecida pela alcunha de Soraya Saga) que tiveram inúmeros trabalhos de peso dentro da companhia. Ambos desempenharam importante papéis em Final Fantasy VI, com Takahashi sendo o responsável pela cena inicial em que os Magitek Armors caminhem na neve em direção à Narshe enquanto Saga teve um grande envolvimento na criação de Edgar e Sabin.  

Desenvolvido em cerca de dois anos por uma equipe de trinta pessoas, Xenogears recebeu esse nome graças à junção das palavras “Xeno” e “Gears”. Com a primeira denotando algo desconhecido e extraterrestre enquanto a segunda fazia referência aos enormes robôs de combate que simbolizavam diversos aspectos do jogo, indo muito além de apenas meras máquinas de guerra. As cenas em anime foram uma escolha viável diante da dificuldade em se transpor de maneira satisfatória os Gears em CGs. Por fim, ironicamente, os personagens foram modelados em sprites habitando um mundo construído em três dimensões.  

Porém, os quesitos técnicos são a face menos interessante desse título. A profunda amálgama entre psicanálise, sociologia, referências bíblicas, misticismo judaico, conceitos filosóficos, transhumanismo, e gnosticismo, tranquilamente já seriam suficientes para alçarem Xenogears aos status que alcançou. Porém, ele vai além ao apresentar de maneira crua e sem pudor vários temas tabus como pedofilia, xenofobia, suicídio, escravidão, relações abusivas, tortura, corrupção, genocídio e vício em drogas. 

Idealizado como o quinto episódio de uma vasta história que totalizaria seis capítulos, Xenogears na época não atingiu números suficientes que justificassem à Square a produção de seus quatro prelúdios e de sua derradeira continuação. Talvez, nesse caso, a falsa ideia de que a densidade fosse sinônimo de inacessibilidade seria o principal fator que afastaria certos perfis de jogadores, fato desmistificado ao longo dos anos o tornando um clássico cult. Em outubro de 1999, Takahashi deixou a companhia para fundar a Monolith Soft com o suporte financeiro da Namco, criando a franquia Xenosaga que assim como seu antecessor foi projetado para ser uma hexalogia, herdando muitos aspectos e premissas dele. Porém, teve um fim semelhante recebendo apenas três jogos que foram lançados em 2002, 2004 e 2006, respectivamente. 

Deus, o principal antagonista de Xenogears foi o grande responsável pela maioria das polêmicas que envolveram o título e a fonte de onde derivou todas as demais ramificações do enredo. Várias entidades cristãs atacaram veladamente os produtores por se sentirem afrontadas em verem o nome do pilar de sua fé ser associado à uma criatura que deveria ser derrotada pelos protagonistas em busca da autonomia sobre seus próprios destinos. Mas, como veremos mais à frente essa escolha foi tudo, menos gratuita. 

Cerca de 10.000 anos antes dos acontecimentos do jogo, Aldridge, uma imponente nave tripulada de dimensões colossais da Federação Galática transportava um organismo que combinava partes biológicas com um avançado sistema computacional. Essa inteligência artificial foi criada na esperança de trazer um fim à guerra intergaláctica que assolava o universo.  Porém, em determinado ponto da viagem esse ser senciente tenta tomar o controle de Kadomony, o computador central de Aldridge, obrigando o capitão do veículo espacial a acionar seu mecanismo de autodestruição em uma manobra desesperada. Extremamente avariado após os destroços originários da explosão se chocarem contra um inóspito e desabitado planeta próximo, Deus se encontra submerso nas profundezas de um vasto oceano. Nesse momento, ele aciona um protocolo de autoreparação mediado por Kadomony que possui a capacidade de gerar vida artificialmente. Assim, tem início seu plano de ressurreição, com os humanos sendo criados como meros instrumentos com a missão de garantirem seu retorno. Simbolicamente, Kadomony pode ser entendido como a personificação do Adão biblico, o progenitor dos homens.  

Mais referência são vistas nas três partes que compõem esse supercomputador vivo, chamadas de Persona, Anima e Animus. Termos esses elaborados pelo psicanalista austríaco Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. E, enquanto o primeiro conceito se refere à máscara social que o indivíduo apresenta ao mundo ocultando sua verdadeira natureza, os dois últimos tratam da polarização sexual reprimida da psique. Nos homens, a Anima rege seu lado feminino inato. Já nas mulheres, o Animus se encarrega de manter características masculinas em seu subconsciente. Ao associarmos essa tríade de conceitos ao jogo, temos a Persona representando os diferentes papéis desempenhados pelos humanos como marionetes de Deus, com a Anima e Animus enfatizando a confluência dos gêneros que se misturam e se confundem ao longo do enredo de Xenogears. 

Com o passar dos séculos, os seres humanos fizeram grandes avanços tecnológicos, alcançaram domínio sobre as artes e deram grandes saltos nas vertentes cientificas. Conforme essa história se desenhava, uma organização teocrática se ergueu, estendendo suas influências em todo o planeta através do monopólio sobre todas as áreas de atuação humanas. Conhecida na versão japonesa como Church foi rebatizada para Ethos quando o jogo foi localizado para o Ocidente. Mais uma vez, essa mudança foi motivada por um possível conflito com os cristãos. É irônico pensar como houve uma preocupação em relação à uma palavra que fazia alusão à igreja, mas nada foi feito quanto à mudança de Deus, que soava muito mais ofensiva se seguirmos os mesmos critérios.  

O fato é que Ethos combinava muito mais com os propósitos dessa instituição do que sua contraparte nipônica. Etimologicamente, é derivada do grego antigo e pode ser traduzida como hábitos ou costumes. Um nome apropriado para uma entidade que ditava regras, direcionamentos e normas de conduta. A ideia aqui não era exatamente fazer uma crítica velada à religião, e sim mostrar de modo empírico que os traços da imperfeição humana podem levar pessoas em diferentes posições e condições à prática de vícios e comportamentos hediondos como os altos sacerdotes de Ethos. 

Xenogears tem início em meio ao conflito entre os continentes de Kislev e Aveh. Situada neste último, a vila de Lahan é o lar de Fei, um jovem de 18 anos que foi acolhido por seus habitantes três anos antes, quando chegou ao local sem nenhum resquício de seu passado. Certo dia, ao voltar para a vila, ele avista o local em chamas e decidir entrar em um Gear vazio para combater as forças de Kislev, mas outra personalidade se apodera de seu corpo e uma tragédia acontece quando além matar seus oponentes vários inocentes são massacrados pelos seus ataques. De volta a si, ele é hostilizado pelos sobreviventes, desorientado e carregando um enorme sentimento de culpa, decide se exilar. Na floresta localizada nos arredores do local, Fei encontra Elhaym Van Houten(conhecida pelos mais próximos como Elly), uma oficial da Gebler, esquadrão de elite das forças armadas de Solaris, uma avançada sociedade que reside nos céus e controla todos os acontecimentos dos bastidores os direcionando passo a passo à ressurreição de Deus. Elly, visivelmente transtornada admite que o genocídio em Lahan foi responsabilidade sua e ambos saem desse encontro com uma estranha sensação familiar como se conhecessem previamente. 

Na verdade, Fei junto ao cientista Kim Kasim e ao pintor Lacan(uma clara alusão ao psicanalista francês homônimo) são reencarnações de Abel(outra explicita referência bíblica), o único sobrevivente de Eldridge e o primeiro ser humano a estar diante de um ser extradimensional chamado “Onda da Existência”(representado como um monolito muito semelhante ao visto no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço), sem gênero definido e constituído de pura energia que ficou preso à Deus, graças à uma poderosa e desconhecida fonte de energia conhecida como Zohar(nome derivado de importantes escritos da cabala judaica). Seu propósito é se libertar de seu confinamento e voltar à sua dimensão de origem. A Onda de Existência denomina Abel como o “Contato” e lhe concede a missão de derrotar Deus através de várias vidas que atravessam as eras até que esse objetivo se cumpra.  

Elly e suas múltiplas personificações acompanharam o Contato através de todas as suas emanações. Conhecida como Antitipo, ela serve como uma intermediária entre a Onda da Existência e o Contato. Claras alusões são feitas ao Espiritismo que tem como princípio fundamental o processo reencarnatório que se processa ao redor de objetivos pré-definidos. Além disso, o postulado do “Eterno Retorno”, forjado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, trata da repetição dos ciclos da vida, da angústia em uma existência sempre igual e de possíveis caminhos para se portar de maneira digna diante de um desespero inerente à essa condição. Junto a isso se somam aspectos da tragédia grega onde grandes heróis lutam contra os próprios destinos, mas fatalmente incorrem ao sofrimento. E, ainda que seja nomeado como o Deus cristão, o inimigo central da trama se assemelha mais conceitualmente ao Demiurgo gnóstico, o criador do mundo físico que é considerado um local inferior por ser uma mera cópia do reino das ideias, com uma personalidade egoísta e de sabedoria limitada e imperfeita.  

Fei tem sua personalidade fragmentada em aspectos multifacetados ao sofrer severas torturas e experimentos durante a infância. Os termos Id, Ego e Super-Ego erigidos pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud, respectivamente, representam em Xenogears a sua face selvagem, incontrolável, sádica e destrutiva, uma criança medrosa, frágil e covarde e, o aspecto dominante que sublima as duas anteriores. 

No embate final contra Deus mais um conceito nietzscheano vêm à tona, aqui a “Vontade de Potência” significa o irrefreável ímpeto que o ser humano tem de superar os próprios limites e se transcender. Mas, a queda dessa falsa divindade ainda não é o fim. Fei e Elly continuam atados àa seus destinos e em um confronto simbólico contra Urobouros(símbolo místico da eternidade, representado de forma circular por uma serpente que morde a própria cauda) decreta a cisão de todas as amarras que os prendiam e os condicionavam. Nosso protagonista finalmente alcança a condição de Super-Homem, todas as falsas verdades são abandonadas, todos as bases que fundamentavam seu próprio eu são descartadas.

Agora, só há espaço para a reinvenção do próprio caminho. Fei e Elly pela primeira vez possuem o poder de decisão em suas mãos. Podendo, inclusive, optarem por nunca mais se verem. Nesse sentido, até o conceito de amor é colocado em xeque. Esse sentimento realmente seria real ou apenas a força motriz necessária para que ambos desempenhassem os papéis a que foram impostos? 

Eric Filardi
Eric Filardi

Quando pequeno quis ser jogador. O sonho de criança passou. Uma vida nova se anseia. Bem-vindo ao melhor site de futebol. Bem-vindo ao Futebol na Veia. Sou Eric Filardi, paulistano de 28 anos, criado em Taboão da Serra, jornalista pós-graduado em Jornalismo Esportivo e apaixonado por futebol. Como todo jornalista amo escrever. Como todo brasileiro amo futebol. Tenho meu clube e minhas preferências, mas viso o profissionalismo e a imparcialidade, sem deixar de lado a criatividade.