CENSURA: as antigas regras de conteúdo da Nintendo (Parte 1)

CENSURA: as antigas regras de conteúdo da Nintendo (Parte 1)

CENSURA: as antigas regras de conteúdo da Nintendo (Parte 1)

A indústria dos games deu seus primeiros passos na década de 70, muito antes que se pudesse pensar em censura aplicada aos jogos: em 1971 foi lançado o primeiro arcade comercial, Computer Space, e no ano seguinte surgiu o primeiro console caseiro, o Magnavox Odyssey

Meses depois o arcade Pong, que usava a ideia de um dos jogos do Odyssey, logrou notável sucesso comercial, e recebeu uma versão caseira na forma dum console dedicado (incapaz de receber outros jogos além do que já trazia em si).

A partir daí vários consoles “clones” surgiram copiando o hardware do console dedicado de Pong; era a primeira geração de consoles, que logo daria lugar à segunda geração, caracterizada por consoles que recebiam cartuchos com uma memória ROM contendo jogos diferentes, o que tornava a biblioteca de cada console potencialmente infinita. 

A grande marca dessa geração contribuiu para a crise que ele viria a gerar na indústria dos games: a possibilidade de receber cartuchos com jogos diferentes potencializava ao infinito as bibliotecas dos consoles, mas à época a indústria de games ainda não tinha desenvolvido processos consistentes de controle de qualidade.

E uma enxurrada de games de baixa qualidade afetou sobretudo o principal console da segunda geração, o Atari 2600, aparelho que teve o mérito de popularizar o conceito de console de videogame ao redor do mundo. 

Os inúmeros jogos ruins que eram lançados na tentativa de surfar no sucesso do console foi uma das causas da crise dos consoles que os Estados Unidos viveram a partir de 1983, e que levou a Atari a, na calada da noite,  enterrar no deserto as sobras do seu estoque de cartuchos que não vendiam!

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A partir daí os PC’s da época passaram a ocupar o lugar dos consoles como principal forma de jogar videogame em casa. Mas, ao fim da década, uma segunda onda de popularidade dos consoles chegou à América, e essa onda vinha do oriente: a bola da vez não era o console de uma empresa americana, e sim da japonesa Nintendo: o Famicom, que chegou aos Estados Unidos como NES: Nintendo Entertainment System, o nosso “Nintendinho”. 

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Símbolo da terceira geração de consoles que, com seu Super Mario Bros., convenceu novamente o mercado americano de que consoles caseiros eram uma boa ideia, e ainda trouxe boa parte dos jogadores de fliperama de volta pra casa num período em que a chamada “era de ouro dos arcades” dava sinais de estar chegando ao fim.

Nesse período a popularidade dos videogames em suas diversas formas não podia mais ser ignorada; e, à medida em que essa popularidade crescia, cresceu também uma preocupação e um certo “pânico moral” em relação aos games, sobretudo em pessoas de mais idade que os viam essencialmente como entretenimento infantil da nova geração. Eram os anos do governo conservador do presidente Ronald Reagan, e começava a discussão, que nunca terminou, sobre uma suposta, e jamais evidenciada, relação de causa e efeito entre games e violência real.

O mercado de games sentiu o impacto disso e muitas empresas não queriam repetir o erro da Atari; por isso, além de controle de qualidade, passaram a ter, e comunicar ao público americano, um controle de conteúdo que atendesse às preocupações, bem fundamentadas ou não, daquela sociedade sobre a influências dos games, afinal elas queriam vender jogos para aquele público!

Empresas diferentes lidaram com isso de formas diferentes.  Um livro de 1994 chamado “Guia dos pais para os videogames exemplificou a coisa com uma analogia: segundo os autores, de vez em quando há casos de crianças que caem em poços, não é algo frequente, mas quando acontece tem consequências terríveis para a criança em questão, se a Sega da época fosse cuidar desse problema ela não mudaria nada nos poços, mas colocaria um aviso claro de alerta em qualquer um que oferecesse risco a uma criança. Já com a Nintendo seria diferente, a “Big N” simplesmente alteraria todos os poços para que tivessem menos de um metro de profundidade. 

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Dito de modo menos metafórico: a Nintendo da América alterava os jogos para que eles parecessem mais “amigáveis para toda a familia”, na intenção de ser aceita pelo mercado americano.

Essas alterações implicavam em questões culturais: a Nintendo era uma empresa japonesa, assim como grande parte das companhias que produziam jogos para seus consoles; aqueles jogos eram feitos por japoneses para o mercado japonês, trazê-los para o mercado americano resultava em muito mais que traduzir esses jogos: o trabalho necessário se chama localização: o processo de adaptar um produto para uma região, país, grupo ou cultura específica; a localização é algo que vai além da tradução porque envolve adaptar essa mesma tradução e outros aspectos do produto às diferenças culturais.

  No desenvolvimento de um software há algo chamado QA, sigla que significa quality assurance, ou, em bom português, garantia de qualidade: um conjunto de processos para reduzir custos, evitar desperdícios e sobretudo maximizar a qualidade final dos produtos. 

Um processo de localização envolve pegar um produto pronto e fazer um novo processo de garantia de qualidade nele, com objetivo de maximizar sua qualidade para um público alvo específico. E qualidade aqui não é um termo absoluto, é algo que envolve o que aquele público alvo consideraria como qualidade.

Era isso que as empresas de games faziam ao trazer games do Japão para a América, inclusive a maior delas na época, a Nintendo. E era justamente nesse processo que incidiam as censuras e alterações que a Nintendo da América fazia nos jogos

Hoje ROM’s de games japoneses circulam de maneira pirata pela internet, há traduções feitas por fãs e ROM’s de games que não chegaram a ser lançados. A comparação dessas ROM’s com as suas versões ocidentais nos mostra o tanto de alterações que a Nintendo da América fez. Esse é um assunto bastante conhecido e discutido, os exemplos são tantos e tão variados que parece que a empresa censurava aleatoriamente coisas que achava inapropriadas para sua imagem.

Mas a verdade é outra: não era aleatório. A Nintendo da América publicou uma nota que servia como um guia da sua política oficial sobre o conteúdo dos seus jogos; qualquer desenvolvedora que quisesse produzir jogos para um console da Nintendo e publicá-lo na América deveria se adequar a essas políticas, sob pena de ter seus jogos rejeitados, alterados ou enviados para revisão, o que poderia ser um pesadelo envolvendo trabalhar novamente num jogo que já estava pronto, adiar prazos e gastar mais. 

Imagine, por exemplo, o tanto de tempo e esforço que levaria pra revisar todo o texto dum jogo de RPG por conta de um diálogo que violava as políticas da Nintendo!  Por isso muitas empresas que produziam jogos para a Nintendo exageravam numa censura prévia para evitar esse tipo de problema.

Mas afinal, quais eram as regras, a lista das coisas que a Nintendo da America “censurava”? É justamente isso que esmiuçamos nesse artigo, vamos pegar uma por uma as 10 regras dessa nota oficial com a política de conteúdo da Nintendo da América para entender e procurar alguns exemplos de jogos onde elas se aplicaram, começando pela…

 

Regra Número 1: “A Nintendo não aprovará jogos que incluam conteúdo sexualmente sugestivo ou explicito, incluindo estupro ou nudez.”

Obviamente atos sexuais e meras alusões a eles ou à sexualidade em geral não eram tolerados pela Nintendo, que queria vender seus jogos aos americanos mais conservadores. Isso muitas vezes se chocou com o fato de que os videogames no Japão não eram vistos essencialmente como brinquedos infantis, e os jogos lá eram feitos com conhecimento de que poderiam ser populares com crianças e adultos, e a cultura pop japonesa pode ser bastante liberal quanto a representações de nudez e sexo.

No processo de localização essa regra foi acionada várias vezes para alterar aspectos de muitos jogos que vinham do Japão. Mesmo piadas de duplo sentido ou simples diálogos que aludiam à sexualidade eram alterados. 

Foi o que aconteceu, por exemplo, com Chrono Trigger: no momento em que a personagem Ayla surge pela primeira vez no jogo ela tem um diálogo com Crono, Marlee e Lucca se elas estiverem no grupo. 

Nesse diálogo, no texto japonês, Ayla diz que gosta de homens fortes e por isso gosta de Crono, em seguida ela olha para as duas moças no grupo e diz que elas também são fortes, e que gosta de pessoas fortes não importando se forem homens ou mulheres, Lucca então diz que não tá nessa: uma piadinha de duplo sentido indicando uma provável bissexualidade de Ayla. 

Na localização americana esse diálogo foi alterado, Ayla não diz pra Chrono que gosta de homens fortes, e sim de pessoas fortes. E, quando diria às moças que gosta de pessoas fortes independente do sexo, a tradução muda o texto para que ela diga que respeita pessoas fortes, ao invés de gostar, atenuando e quase desfazendo o duplo sentido original.

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Em outro momento do jogo Ayla questiona Marlee sobre como ela amamentaria seus futuros filhos com seios tão pequenos, o que, a rigor, não é uma referência sexual direta, mas na versão americana o texto foi alterado para que Ayla pergunte a Marlee se ela já está pronta para deixar o ninho, um diálogo que não tem nada a ver com o original censurado!

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Além dos diálogos, a nudez era literalmente coberta mesmo nas suas formas mais inocentes.

Há uma cena no jogo Mother 2, publicado no ocidente como EarthBound, em que o personagem Ness visita o mundo interior da sua mente; é comum na cultura pop japonesa que quando personagens estejam em dimensões espirituais ou dentro da sua própria mente eles apareçam nus, simbolizando que estão na sua forma mais pura e frágil.

E é assim que o personagem é retratado nesse momento do jogo, ou pelo menos no original Japonês: a Nintendo da América não hesitou em vestir o rapaz!

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Já no Final Fantasy VI, publicado no ocidente como III, a Nintendo se deu ao trabalho de cobrir o traseiro de Siren, ser mágico que poderia ser conjurado pelo jogador.

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Enquanto no Sunset Riders as moças que recebem os personagens e as que dançam pra eles estão com menos pele de fora na versão americana para Super Nintendo que no original de Arcade.

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Até mesmo a nudez de estátuas clássicas foi coberta em Super Castlevania IV!

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Os exemplos dessa regra são tantos que eu ficaria o vídeo inteiro só nela se fosse listar mais deles, por isso vamos à…

 

Regra Número 2: “A Nintendo não aprovará jogos que contenham representações ou linguagem que denigram especificamente membros de qualquer dos sexos.”

Essa regra existia basicamente para evitar formas mais grosseiras de machismo nos jogos, e com ela mais uma vez houve um choque com a cultura japonesa, em muitos aspectos mais machista que a cultura norte-americana.

 Talvez um exemplo de aplicação dessa regra tenha ocorrido no game Lufia II: Rise of the Sinistrals: na versão japonesa do game há um cassino em que funcionárias trabalham fantasiadas de coelhinhas no estilo Playboy, uma representação da mulher como uma espécie de “pet”, na versão americana eles estão vestidas com roupas comuns.

Talvez essa tenha sido uma mistura da aplicação dessa segunda regra sobre sexismo com a primeira sobre sexualização. 

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De qualquer modo essa regra teve outro efeito peculiar: a troca de algumas inimigas mulheres por versões masculinas nas versões ocidentais de alguns jogos, para não fazer o jogador constantemente bater em mulheres controlando um personagem masculino. Isso aconteceu sobretudo em jogos beat'em up, os famosos briga de rua.

E o curioso é que, em grande parte dos casos, não foi a Nintendo quem fez as alterações: empresas parceiras, ao desenvolverem ou portarem seus jogos para a Nintendo, faziam as alterações ao fazer a localização para o mercado americano; como eu disse antes, as vezes empresas que produziam jogos para consoles da Nintendo faziam censuras prévias temendo rejeição e alterações por parte da Nintendo da América!

Isso pode ser visto em jogos como Sonic Blast Man

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Ninja Warriors Again

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e até Sunset Riders, onde uma moça que joga bombas é substituída pelo sprite reutilizado de um inimigo masculino. 

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Porém o caso mais famoso desse tipo talvez seja o de Final Fight, quando a própria Capcom trocou personagens femininas para masculinas em versões americanas dos jogos da série para Super Nintendo, incluindo as personagens Poison e Roxy, que foram substituídas por bandidos chamados Billy e Sid no port do primeiro jogo da franquia.

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 Mas o que gerou polêmica foi a outra “solução” que a Capcom utilizou: colocar alusões de que a personagem Poison seria transgênero. Quando essas alusões começaram a chegar nas versões ocidentais dos jogos elas iniciaram uma controvérsia bastante conhecida, e que dura até hoje, sobre o gênero da personagem. Mas esse realmente não é o tema desse artigo, por isso vamos para a…

 

Regra número 3: A Nintendo não aprovará jogos que representem violência aleatória, gratuita ou excessiva. 

Essa regra tem inúmeros exemplos porque games muito frequentemente envolvem o enfrentamento direto com inimigos. Eu poderia fazer um artigo inteiro só falando sobre aplicações dessa regra, que em geral implicava na não aceitação de qualquer forma de sangue ou carnificina, aquilo que os americanos chamariam de “gore”.

Entre esses muitos exemplos estão alterações nas telas de continue de Street Fighter 2 que removem o sangue dando um aspecto menos desgraçado às caras dos lutadores derrotados

o mesmo acontece com o jogo The Combatribes

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Em muitos outros casos, como em Final Fight, o sangue era trocado por efeitos mais cartunescos

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Mas um dos casos mais marcantes de aplicação dessa regra foi o port para Super Nintendo do primeiro Mortal Kombat, um game essencialmente violento e que teve na sua representação gráfica e abundante de carnificina um dos motivos do seu sucesso nos arcades.

No port de Super Nintendo do game todo sangue foi trocado por enormes bagas de suor que saiam dos personagens quando eles apanhavam, e os famigerados fatalities violentos foram simplesmente removidos. 

 

Esse port flopou comercialmente, sobretudo se comparado ao port sem censura lançado para o console rival, o Mega Drive. Essa foi uma das vezes em que a política de conteúdo da Nintendo acabou se voltando contra ela. E Mortal Kombat era um jogo em que, além de violência, havia mortes violentas, o que também infringia a…

 

Regra número 4: A Nintendo não aceitará jogos que representem ilustrações gráficas da morte.

Ao falar da regra anterior eu disse que frequentemente os jogos envolviam o enfrentamento direto com inimigos, sendo assim, também era frequente a morte desses inimigos ou do próprio personagem jogador. 

Por isso a regra número 4 tinha um efeito curioso: fazia com que a Nintendo da América, no processo de localização, removesse qualquer menção à morte

Em geral os textos nos jogos e seus manuais se referiam à derrota, destruição ou eliminação dos inimigos, jamais se dizia que eles morreram; e, apesar dos jogadores popularmente se referirem às vidas dos personagens, os manuais americanos frequentemente as chamavam de tentativas ou chances, para evitar a expressão “perder a vida” e a consequente alusão à morte. 

Quando acontecessem de fato nos jogos, as mortes deveriam ser representadas de modo “inofensivo”, os corpos de inimigos ou do personagem não deveriam ficar na tela muito tempo, desaparecendo rapidamente em efeitos suaves ou até engraçados.

E há pelo menos um exemplo de uma provável morte alterada para não parecer o que de fato era: me refiro à cena de Final Fantasy VI em que a personagem Celes faz uma tentativa frustrada de suicídio ao pular de uma falésia.

Na versão americana do game, lançada como Final Fantasy III, o texto original foi alterado e a personagem diz que realizará um salto de fé para se animar

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Essas restrições à morte e a violência em geral adquirem caráter específico na…

 

Regra Número 5: A Nintendo não aprovará jogos que representem violência ou abuso doméstico.

Violência doméstica é um tipo específico de violência  que não costumava ocorrer muito nos games da época porque raramente eles se passavam em ambientes domésticos.

Mas há exemplos em que essa regra se aplicou, um deles ocorreu em Mother 2, Earthbound no ocidente: em certo momento do jogo o personagem Pokey diz que quando seu pai voltar ele vai levar 100 palmadas, na versão ocidental o texto foi alterado e ele diz algo como “quando meu pai chegar eu vou ser punido”.

Quando o pai do personagem chega, o leva para outro cômodo e podemos ouvir barulhos de porrada, que na localização ocidental foram trocados por sons cartunescos; em seguida, quando reencontramos o garoto, ele diz que seu traseiro está doendo, mencionando as palmadas que levou, mas na versão ocidental o texto foi alterado para que ele diga que vai ficar sem sobremesa pelo resto da década. 

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Apesar de existirem, os exemplos dessa regra são menores que os das anteriores, mas ainda assim mais numerosos que os da sexta regra que veremos na segunda parte deste artigo.