Como começou a polêmica
Nesta semana, a ministra Ana Moser causou polêmica e sacudiu as redes sociais ao afirmar que não considera esports como “esportes de verdade” e que, por isso, não investirá nesse segmento. Ela, que é ex-jogadora de vôlei, comparou o treino de atletas de esportes eletrônicos ao da cantora Ivete Sangalo e declarou ainda que as competições fazem parte da indústria do entretenimento, assim como a música.
“A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. Então, você se diverte jogando videogame, você se divertiu. “Ah, mas o pessoal treina para fazer”. Treina, assim como o artista. Eu falei esses dias, assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta da música. Ela é simplesmente uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível. Ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, ela não é aberta, como o esporte”, disse Ana Moser em entrevista ao UOL.
Como surgiu o termo esports
Esports é a junção de duas palavras em inglês “electronic” e “sports”, ou seja, esportes eletrônicos. O termo nasceu em 1988, na revista americana Wired, que os chamava de “online sports game”. Só em 1999, em um comunicado à imprensa sobre o lançamento da associação Online Gamers Association, o termo evoluiu para “esports”.
Definição de esportes no dicionário
Segundo o dicionário Michaelis, esportes são 1. a prática metódica de exercícios físicos visando o lazer e o condicionamento do corpo e da saúde, 2. o conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, que obedecem regras específicas e que são praticados individualmente ou em equipe, 3. Cada uma dessas atividades; desporte, desporto., 4. Atividade de lazer ou de divertimento; hobby, passatempo.
O que diz a lei
Para o advogado Helio Tadeu Brogna Coelho Zwicker, a Lei do Desporto atualmente existente pode abranger os esports.
“A Lei Geral do Desporto diz que as novas práticas desportivas são reconhecidas pela liberdade lúdica de seus participantes. Portanto, cuidadosamente, a lei deixou a critério do povo decidir, no conjunto de suas manifestações culturais, o que é, ou não, esporte. O fato de o governo não investir na modalidade não significa que a lei exclua os esports de seu conceito. Atualmente, o mercado dos esports adota a Lei Geral do Desporto nas relações jurídicas entre atletas e clubes. Há jurisprudência que vem consolidando o entendimento que a lei mais adequada para os esports é a Lei Geral do Desporto”, disse ele em entrevista ao Globo Esporte.
“A questão do esporte eletrônico a nível federal ainda não é uma realidade. Não tenho essa intenção [de investir nisso]. No meu entendimento, não é esporte. A gente lutou, no ano passado, eu na minha vida pregressa, a frente da Atletas pelo Brasil, a gente fez uma ação muito forte junto ao Legislativo para o texto da Lei Geral [do esporte] não ser aberto o suficiente para poder ter o encaixe dos esportes eletrônicos. O texto está lá protegendo o esporte raiz. Na definição de esporte, tinha sido dado uma abertura que poderia incluir esporte eletrônico, e a gente fechou essa definição para não correr esse risco. Lógico, risco sempre acontece, e é um trabalho constante”, disse ela.
A nova Lei Geral do Esporte (PL 1.153/2019), do senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), está em tramitação no Senado. O texto chegou a ser aprovado em junho no Senado, com relatoria de Leila Barros (PDT-DF), e em julho pela Câmara. Contudo, sofreu alterações e precisará ser apreciado novamente pelos senadores.
O texto diz que “entende-se por esporte toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo atividades recreativas, a promoção da saúde, o alto rendimento esportivo ou o entretenimento”.
Vale lembrar que no Brasil, não há uma legislação específica sobre esports. No passado, houve um projeto que visava conceituar o esports e regulá-los, mas não foi para frente. Toda vez que uma proposta assim entre em debate, a comunidade gamer tem resistência, com medo de que uma regulação possa engessar o mercado.
Opiniões de especialistas
Leandro Carlos Mazzei, doutor em Educação Física, professor de Ciências do Esporte da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Leandro Carlos Mazzei falou sobre isso em entrevista ao Globo Esporte. Para ele, comparar esports com esporte tradicional, no âmbito da sociologia e da filosofia, talvez seja um equívoco. “Esports e esportes são coisas diferentes, vividas por gerações diferentes”, disse.
Entretanto, sob o olhar do esporte, em uma definicação mais moderna e “baseada em um caráter da sociedade industrial”, é possível sim classificar os esports como esporte. “São parecidos em várias definições do esporte moderno. Atletas de esportes tradicionais e eletrônicos têm rotinas bem semelhantes”, afirmou.
Porém, sob o olhar de políticas públicas, há, no esporte tradicional, um problema muito grave de acessibilidade. Boa parte das escolas não tem instalações esportivas. Há esporte de alto rendimento muito bem desenvolvido no Brasil, mas não há um nível de participação esportiva muito grande. “E aí o entendimento da Ana Moser é esse, apesar de ela talvez ter se comunicado mal, é de que haverá prioridade para essa acessibilidade à prática esportiva tradicional, voltada para a formação e a saúde do indivíduo. Provavelmente haverá um orçamento limitado e, se fosse colocar esports nesse guarda-chuva, teria problemas”, disse o professor.
De acordo com ele, o esporte eletrônico precisa de outras questões, que envolvem tecnologia e acessibilidade, mas em áreas diferentes. No esporte tradicional, a acessibilidade envolve espaço físico. No esporte eletrônico envolve condições tecnológicas, inclusive de acesso à internet.
Leandro Mazzei destacou que os esportes eletrônicos não dependem de confederações ou federações para os campeonatos existirem, pois são organizadoras de torneios independentes ou as próprias desenvolvedoras dos jogos que promovem os games, que, ao contrário dos esportes, representam propriedade intelectual de empresas privadas.
“Nesse sentido, eu tenho lá minhas ressalvas se o poder público de fato precisa demandar investimento para o desenvolvimento do esporte eletrônico, já que ele se desenvolve por si próprio”, avalia Leandro.
Sim, os esportes eletrônicos estão sendo reconhecidos por entidades olímpicas. Contudo, para ele, essa aceitação deve ser maior em modalidades com ligação com os esportes tradicionais. “Eu imagino que o esporte eletrônico vai ser mais facilmente reconhecido quando houver ligação com as modalidades esportivas tradicionais”, opina ele.
Roberto Nahon, Médico do Esporte , diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte e ex-médico-chefe do COB
Para Roberto Nahon, a definição do que é ou não esporte é uma convenção social. Para o médico, há boas justificativas para as duas vertentes, mas ele prefere a conceituação de que “o esporte pressupõe treinamento para obtenção de uma performance, o que abrangeria os campeonatos de games”.
Do ponto de vista da saúde, “sem a menor dúvida é mais saudável o indivíduo que pratica atividade física do que o indivíduo que não pratica, mas, enquanto atividade social, a competição de esports é saudável. A atividade física pode complementar, porque vai melhorar a performance. Eu tenho jogadores de xadrez e de esports como pacientes e prescrevo atividades físicas para eles, tanto para que fiquem mais relaxados quando sob tensão quanto para que o tempo sentado não cause dor”, diz ele.
Daniel Orlean, gestor que capitaneou a entrada do Flamengo para os esports em 2017
Daniel Orlean afirma que vê os esports como esportes, mas considera normal essa resistência inicial, já que essas competições de jogos eletrônicos ainda são recentes.
“O fato de esports fazer o uso de programas de computador com mecânicas gamificadas, ou games, de forma simplificada, não tiram o caráter esportivo. Pelo contrário: esports são a evolução do esporte. São atividades que incorporam competividade, regras e objetivos bem definidos para superação de adversários. É um debate empolgante, mas deve ser feito de cabeça e coração abertos, não com afirmações categóricas. Entendo que a ministra, um exemplo em seu setor, vai abrir espaço para essa discussão. É normal, no começo de qualquer trajetória – e esportes eletrônicos, apesar do sucesso, ainda estão nessa etapa – uma resistência inicial de incumbentes´, os grandes e consagrados do setor”, disse ele.